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Os que somem, os que esperam: RS é o 2º estado com mais desaparecimentos no Brasil

Por trás das estatísticas, há famílias suspensas no tempo buscando rostos que já não veem

16 abr, 2025
 

Era uma manhã de segunda-feira, como qualquer outra, quando Adriano Francisco de Matos, de 44 anos, deixou a casa da irmã em Nova Hartz para trabalhar. Vendedor ambulante de produtos coloniais, foi visto pela última vez em São Leopoldo, carregando dois maços de cigarro e a identidade no bolso. Era início de janeiro. Desde então, sumiu.

Passaram-se dias, semanas, meses. “Ele já tinha sumido antes, ficava um mês fora, mas sempre dava um jeito de avisar alguém. Agora não. Ninguém mais viu, ninguém mais ouviu”, conta Cristiane Francisca Mattos, irmã mais próxima, que hoje carrega a ausência de Adriano como um fardo cotidiano. “É como se a vida tivesse parado naquele dia.”

Pouco mais de um mês depois, uma nova ausência começou a se arrastar em silêncio no Vale do Paranhana. No dia 13 de fevereiro, Romeu Müller, de 76 anos, saiu de casa em Sapiranga e foi visto pela última vez embarcando num ônibus intermunicipal. “Ele embarcou em uma parada mais distante da casa dele, desceu em Taquara e depois seguiu viagem. As câmeras da rodoviária de Rolante, o destino provável, não mostram ele descendo. Ou desceu antes, ou depois daquele ponto”, relata Marcos Müller, filho de Romeu.

Desde então, a família vive dias de angústia e incerteza. “Estamos sempre à procura, conversando com pessoas em Rolante e Riozinho. Já não sabemos mais o que fazer”, desabafa Marcos. O contato com a polícia ocorre duas vezes por semana, mas a espera continua sendo um labirinto sem saída.

Histórias como as de Cristiane e Marcos não são isoladas. Em 2023, o Brasil registrou uma média de 219 desaparecimentos por dia, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Foram 79.806 casos ao longo do ano, com 74.208 pessoas localizadas — uma diferença de mais de cinco mil ainda em aberto.

O Rio Grande do Sul, com 7.424 ocorrências, ocupa o segundo lugar no ranking nacional, atrás apenas de São Paulo (20.411). Proporcionalmente, são 68,2 desaparecidos a cada 100 mil habitantes no Estado, ficando abaixo do Distrito Federal, Roraima e Rondônia, locais com populações menores. O dado, porém, não revela apenas o drama individual de cada sumiço — mas também nuances institucionais e sociais, como destaca o professor de Direito Rodrigo Azevedo, da PUCRS.

[Desaparecidos pelo Brasil]
Conforme dados levantados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, as unidades federativas com mais desaparecimentos por 100 mil habitantes são Distrito Federal, Roraima, Rondônia e Rio Grande do Sul.

De acordo com ele, o aumento nos registros pode indicar uma melhora nos sistemas de notificação, mas também reflete uma realidade dura: populações vulneráveis seguem desprotegidas. “Crianças negligenciadas, idosos com transtornos cognitivos, mulheres em situação de violência doméstica, pessoas em situação de rua e usuários problemáticos de drogas estão muito expostos ao risco de desaparecer”, aponta.

Para o diretor do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), Mário Souza, o volume de registros é, sim, um sinal positivo. “Aqui no Estado há uma política clara de orientação para que as pessoas registrem o desaparecimento, o que não ocorre em todo o Brasil. Isso gera um efeito semelhante ao da violência doméstica: mais registros não significam mais violência, mas, sim, mais mulheres denunciando. O mesmo vale para desaparecimentos.”

Souza reforça que a maioria dos casos é resolvida. Em 2023, foram 7.236 pessoas localizadas, número próximo ao de desaparecimentos. “Temos uma delegacia especializada em Porto Alegre, equipes treinadas em todas as delegacias de homicídios e um protocolo atualizado”, diz. “Só nos últimos meses, localizamos mais de cem pessoas vivas. O trabalho tem sido muito positivo.”

 Entre os desaparecidos, o diretor identifica três grupos principais: idosos com problemas de saúde, como Romeu; pessoas que, por questões psicológicas ou conflitos familiares, optam por sumir; e vítimas de crimes. “Ainda há registros falsos e casos diversos, mas todos são tratados com seriedade. A orientação é: registre. Só assim podemos agir”, apela Souza.

Para o professor Rodrigo Azevedo, é preciso mais do que diligência policial. “O enfrentamento dos desaparecimentos exige políticas públicas intersetoriais. Segurança, saúde, assistência social e educação precisam atuar em conjunto.”

O acadêmico defende a criação de uma Política Estadual de Pessoas Desaparecidas, com diretrizes claras para prevenção, busca ativa e atendimento às famílias. “Investimento em tecnologias, como reconhecimento facial, integração de bancos de dados e capacitação de agentes é fundamental. Mas também precisamos de ações preventivas nas escolas e comunidades.”

Outro ponto urgente, segundo Azevedo, é o suporte psicológico e jurídico aos familiares. “A espera consome. E muitas famílias não têm sequer acompanhamento adequado. Isso deveria ser garantido.”

A dor sem nome
No papel, o desaparecimento de uma pessoa é um boletim de ocorrência. Na vida de quem fica, é um luto suspenso. A psicóloga Lisiana Saltiel, especializada em traumas e perdas, explica: “Chamamos de perda ambígua. Não há confirmação da morte, nem ritual de despedida. Isso impede o início do processo de elaboração do luto.”

A mente, então, oscila entre a esperança e o desespero. “A ausência de respostas gera culpa, raiva, melancolia. A família revira as possibilidades. Foi um crime? Um acidente? Um surto? E como não há resposta, o sofrimento se volta para dentro, gerando sintomas traumáticos profundos”, afirma Saltiel.

É o que vive Cristiane, a irmã de Adriano. Ela relembra os últimos dias do irmão como uma espécie de véspera permanente: “Ele estava normal, brincou com os sobrinhos, saiu dizendo ‘até mais’. A gente nunca imagina que esse ‘até mais’ vira silêncio.”

A família mobilizou redes sociais, jornais locais e até uma reportagem de TV. Foi à delegacia. Recebeu apoio dos investigadores. Mas a espera continua. “Meu filho, que é autista, pergunta do tio. Meu marido acorda no meio da noite achando que escutou a voz dele. A gente segue vivendo, mas é como se um pedaço da vida tivesse sumido junto com ele”, relata Mattos.

Silêncios que falam
Apesar da estrutura avançada no Rio Grande do Sul, a dor dos desaparecimentos revela fronteiras ainda frágeis. Nem sempre a busca é imediata. Nem sempre há resposta. E nem sempre a sociedade enxerga o desaparecimento como um fenômeno social complexo — que envolve saúde mental, desigualdade, violência doméstica e falhas institucionais.

O desaparecimento, como evento, é invisível. Não tem alarde. Não tem sangue. Não deixa marca. Só a ausência. “Ele saiu só com a roupa do corpo”, repete Cristiane, como quem tenta entender. “Não levou nem uma muda de roupa. Nem um bilhete. Só foi. E a gente ficou aqui, com essa dor que não passa.”

Enquanto ela fala, a voz embarga. Há uma pausa. Depois, recomeça: “A gente ainda acredita. Pode estar em Porto Alegre, num abrigo, num CAPS. Pode estar vivo. Pode voltar. Mas a incerteza é o que mais machuca. A gente só quer saber: onde ele está?”

Uma rede de apoio existente, mas frágil
O Rio Grande do Sul conta com o Disque-Denúncia 0800-642-0121 e uma delegacia especializada em Porto Alegre, supracitada, que atua em cooperação com outras cidades da Região Metropolitana. Mas há limitações. O Estado não possui, por exemplo, um sistema de busca ativa integrado com assistência social e saúde mental, como existe em locais com políticas mais robustas de desaparecidos. Um exemplo é a Unidad de Búsqueda de Personas dadas por Desaparecidas (UBPD), da Colômbia, que acompanha as famílias ao longo de todo o processo com apoio psicossocial e equipes interdisciplinares.

No Brasil como um todo, a maior parte das buscas ainda recai sobre os próprios familiares — que espalham cartazes, mobilizam redes sociais e contam, muitas vezes, com a boa vontade de delegados e agentes. Mesmo onde há estruturas mais avançadas, o peso emocional do desaparecimento permanece sobre quem ficou. São mães, irmãs, filhos, companheiros — todos suspensos no tempo.

Uma resposta que nunca chega
O desaparecimento é uma ruptura. Para quem vai, muitas vezes um ato involuntário. Para quem fica, um vazio que nem o tempo consegue preencher. “Não existe luto quando não há certeza”, explica Saltiel. “E sem luto, não há recomeço. Apenas sobrevida.”

No Brasil, cerca de 219 pessoas somem por dia. A maioria é reencontrada, mas isso pouco conforta quem segue preso entre a esperança e o desespero.

Durante os sete minutos desta leitura, ao menos uma pessoa desapareceu no país. Para quem vive de perto esse silêncio, o mundo não parou. Mas o tempo, sim. E o que resta é a espera — e a coragem de continuar procurando.

O que fazer em caso de desaparecimento

Se alguém desapareceu:

Registre o desaparecimento imediatamente. Não é necessário esperar 24 horas. Vá até uma Delegacia de Polícia Civil ou registre o boletim de ocorrência online, no site da Polícia Civil do seu estado.

Leve informações atualizadas. Fotos recentes, documentos, roupas usadas pela pessoa, dados médicos e locais onde foi vista pela última vez ajudam na investigação.

Divulgue com responsabilidade. Compartilhe informações e fotos nas redes sociais, certificando-se de que são verídicas e que não atrapalham as buscas.

Se quiser ajudar:

Compartilhe informações oficiais. Priorize posts de familiares, delegacias e organizações confiáveis.

Evite espalhar boatos. Notícias falsas ou desatualizadas podem prejudicar as buscas e causar mais sofrimento.

Apoie redes de busca. Existem ONGs e coletivos que atuam na busca por desaparecidos — você pode ajudar como voluntário, doando ou divulgando o trabalho dessas instituições.

 

FONTE: https://www.ufrgs.br/humanista/2025/04/16/desaparecidos-no-rs/

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